Eu sei, mas não devia - Clarice Lispector

Eu sei que nos acostumamos. Mas não devíamos.
Acostumamo-nos a morar em apartamentos de fundos, e a não ter outra vista
que não as janelas em redor.
E porque não temos vista, logo nos acostumamos a não olhar lá para fora.
E porque não olhamos lá para fora, logo nos acostumamos a não abrir de todo
as cortinas.
E porque não abrimos as cortinas logo nos acostumamos a acender cedo a luz.
E à medida que nos acostumamos, esquecemos o sol, esquecemos o ar,
esquecemos a amplidão....

Acostumamo-nos a acordar de manhã sobressaltados porque está na hora.
A tomar o café a correr porque estamos atrasados.
A ler o jornal no autocarro porque não podemos perder o tempo da viagem.
A comer uma sanduíche porque não dá para almoçar. A sair do trabalho porque
já é noite.
A dormitar no autocarro porque estamos cansados. A deitar cedo e dormir
pesado sem termos vivido o dia.....

Acostumamo-nos a esperar o dia inteiro e ouvir ao telefone: hoje não posso ir.
A sorrir para as pessoas sem recebermos um sorriso de volta.
A sermos ignorados quando precisávamos tanto ser vistos.
Acostumamo-nos a pagar por tudo o que desejamos e o que necessitamos.
E a lutar, para ganhar o dinheiro com que pagar esses desejos e essas
necessidades.
E a pagar mais do que as coisas valem.
E a saber que cada vez pagaremos mais.
E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que
pagar....

Acostumamo-nos à poluição.
Às salas fechadas, de ar condicionado e cheiro a cigarro. À luz artificial.
Ao choque que os olhos sofrem com luz natural.
Às bactérias na água potável.
Acostumamo-nos a coisas demais, para não sofrermos....
Em doses pequenas, tentando não perceber, vamos afastando uma dor aqui, um
ressentimento ali, uma revolta acolá....

Se a praia está contaminada, molhamos só os pés e suamos no resto do corpo.
Se o cinema está cheio, sentamo-nos na primeira fila e torcemos um pouco o
pescoço.
Se o trabalho está difícil, consolamo-nos a pensar no fim-de-semana.
E se no fim-de-semana não há muito o que fazer, deitamo-nos cedo e ainda
ficamos satisfeitos porque temos sempre o sono atrasado.
Acostumamo-nos para não nos ralarmos com a aspereza, para preservar a pele.
Acostumamo-nos para evitar feridas.
Acostumamo-nos para poupar a vida. Vida que aos poucos se gasta, e que gasta
de tanto se acostumar, e se perde de si mesma.

2 comentários:

Nina disse...

É duro, mas Clarice tem razão.
Como nos acostumamos com tão pouco.

Abraço de NINA

Valber S. disse...

Realmente Nina ... Vivemos em uma sociedade, onde não temos tempos para mudar nada que fizemos estamos sempre seguindo uma rotina e se acostumando com tudo ... Espero que as pessoas possam perceber isso e poder mudar enquanto há tempo.

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